ser nunca nada de ninguém

o primeiro passo, é conseguires suportar essa pessoa mais que oito dias seguidos.

conhecer. absorver. saber. imaginar. querer. reter. fazer. fotografar. suspender. ter. viver. surpreender.
E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter. Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água do rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogamos o seu sentido. Nisto eu acredito: na verdade destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos. (…)Porque nada é mais íntimo e mais indestrutível do que o silêncio partilhado. Tudo o resto são apenas palavras, sons, frases, coisas que qualquer um pode dizer. (...) Mas o silêncio fica porque nunca mente, porque é tão íntimo que não pode ser representado, é tão envolvente que não pode ser rasgado. (...) Nunca devemos amar em silêncio, nada é mais perigoso do que dividir com outrem os pensamentos vividos em silêncio. Um amor feliz precisa do turbilhão das palavras, das frases aparentemente inúteis e sem sentido, precisa de adjectivos, de elogios, do ruído das banalidades. Não há felicidade que não seja tantas vezes fútil, tantas vezes inútil.


Não te deixarei morrer, David Crockett, de Miguel Sousa Tavares
o acordar com o sol quente a bater na cara, o sorriso e a satisfação que duram todo o dia, a caminhada para a praia, os turistas, o súbtil roçar da areia pelo corpo, o cabelo encaracolado de tão salgado, as descobertas, os amores de verão e as atracções de um dia, as tardes na rua a sentir o inicio da noite quente, os pôr-do-sol na praia, as festas que acabam ao raiar do dia, as gargalhadas tão grandes que o outro lado do mundo poderia ter ouvido, as apostas, as directas, as danças, músicas e bebidas, as noites a falar na cadeira de baloiço e as estreladas na praia, as parvoíces, as casas abandonadas, as gaivotas, as piscinas, os mergulhos e o reencontro de amigos. saudades? muito mais que isso @

a lareira estava acesa e tu estavas sentado no velho sofá com a capa rota e com uma manta à minha espera. tocava bob dylan no velho gira-discos e tu sorrias, de olhos fechados, ao ouvir a sua clássica gaita e a voz amadurecida. estavas quase a dormir, e digo-te agora o quanto me apeteceu parar aqueles segundos no tempo. ficar ali para sempre, à porta, a olhar para ti como um anjo protector e sorrir ao ver que estavas bem. estava prestes a abandonar-te ali no teu sono, quando te ouvi a sussurrar. ‘onde pensas que vais? vem para aqui’ disseste e sorriste, um daqueles sorrisos enormes que me dão borboletas no estômago, sabes? obriguei-me a não correr para o lugar que me tinhas reservado. quando cheguei, no meu passo controlado e com a cara perfeitamente treinada no espelho da casa de banho de ‘não estou assim tão interessada’, olhaste para mim e riste-te. conhecias-me tão bem, era impossível esconder-te algo. ‘eu amo-te, quando é que vais acreditar nisso? importas-te de deixar de ser teimosa e renderes-te aos meus encantos, por favor?’. ‘por favor digo eu… "meus encantos"? deixa-me rir. isso nunca vai acontecer, meu amor, já me devias conhecer.’ e ri-me, ri-me com a satisfação que já não tinha há muito tempo. abraçaste-me e ficámos assim, em silêncio, a ouvir o ‘blowin' in the wind’. ‘e conheço-te’, sussurras-te ao meu ouvido. não percebi, tenho tendência para me perder no meio das conversas e aquela já tinha sido mais uma conversa perdida na minha mente muito baralhada. ‘sei que me amas, apesar de nunca quereres admitir, sei que sabes que eu te amo. também sei que tens medo por já teres sido tantas vezes magoada. sei que choras durante a noite, quando achas que ninguém te está a ouvir e abafa-lo com a almofada. sei que te fartas com facilidade e que quando assim é, o melhor é dar-te espaço. mas também sei que odeias da mesma forma que amas que te dêem espaço. amas demasiado a tua liberdade para abdicares dela, mas não consegues viver sem alguém ao teu lado. és uma princesa com mentalidade de mulher pronta a mudar o mundo. és uma romântica incurável, com o maior coração de todos cheio de sonhos e frases pré-construídas que esperam que te sejam ditas. e tudo isto enquanto dizes que amar não é para ti. talvez não seja eu o homem que te saberei dizer essas frases, mas amo-te, disso não duvido.’ disseste por fim. fiquei calada, nada do que eu dissesse poderia alguma vez comparar-se ao que tinhas dito. era verdade. era uma romântica incurável e chorava. era também verdade que apesar de dizer que não sabia amar, precisava tanto de amor como de ar. e que apesar de todas as desilusões e ilusões que já tinha tido, continuava a precisar dele. e o mais correcto de tudo era que sim, amava-te. à minha maneira, mas amava-te. amava o jeito com que dizias as coisas. os sorrisos e gargalhadas que davas. a maneira como olhavas para mim quando achavas que estava distraída e a forma com que gozavas comigo. amava o facto de te preocupares comigo e quereres o meu bem. amava quando amuavas. amava a tua forma carinhosa de cuidar de mim e de te maravilhares quando eu ria das minhas piadas sem piada, quando o que devias achar era que eu não era normal e que era uma histérica. sorri e fiquei assim durante muito tempo, no teu abraço quente. não precisávamos de mais palavras. tu sabias tudo o que me passava pela mente e sabias que eu te amava. éramos como um só e continuámos a ser, mesmo depois de já não se ouvir o bob d. a cantar e de um novo dia ter nascido. sempre fomos um só, para ser sincera.

- não sou a rapariga certa para ti.
- és sim. apenas não queres ser.
(rich in love, 1993)

recordo-me exactamente como foi.
vinhas descalça pelo meio da rua (a multidão olhava-te com desdém), tinhas um ar fresco, novo, quase como uma recém-nascida. tinhas os sapatos na mão, os caracóis esvoaçavam-te pelas costas e trazias, como sempre, o teu sorriso. a vida passa e tu continuas descalça no meio da multidão, no meio da cidade, no meio do mundo. descalças-te para pisares de uma forma nua e crua o chão que te sustenta, descalças-te para conseguires sentir a multidão, a cidade, o mundo a subir-te pelo corpo acima. de um fazes dois e de dois consegues fazer três. recordo-me exactamente como foi. lembras-te? trazias o mundo nos pés. devagar .. foste-te aproximando, segredando-me vidas, excertos, sorrisos. recordo-me exactamente como foi.
trazias o teu cheiro a menta e o sonho de descalçar a humanidade. eras menta, Ofélia. vinhas descalça, no meio da rua, com tudo aquilo que tens.
olhei para ela pelo retrovisor. tinha uma ou duas rugas no canto do olho, os óculos eram grossos e o cabelo curto mas bem arranjado. pergunto-me o que lhe teria acontecido para ficar assim. para ser tão rígida, tão segura de si mesma. nunca a vi chorar. nunca. era uma mulher do campo, forte e enrijecida pelo sol que apanhava no árduo trabalho. não me lembro dela de outra forma. acho que foram poucas as vezes que a vi rir ou sorrir sequer.
olhei pela janela e perdi-me nos pensamentos. o nevoeiro estava cerrado, só se vendo as casinhas que estavam à beira da estrada, o resto do mundo era branco. por vezes, gostava de ser assim tão segura de mim mesma.
(2008)