está pleno inverno lá fora e eu voltei ao frio em que andava. os pés ficam gelados noites inteiras e as mãos não se aquecem de forma nenhuma durante as longas manhãs. sinto-me fria de coração e quente de cabeça. as coisas sucedem-se à minha volta sem eu conseguir acompanhar cada movimento e não deixo de me sentir frustrada com isso. houve monstros que voltaram para me assombrar quando eu pensava tê-los guardado tão bem há tanto tempo atrás. as lágrimas nunca mais caíram e cada vez mais fraca me sinto, ironia. fiquei fria, continuo assim.
vida. morte. anda tudo demasiado perto, a tocarem-se tantas vezes na ponta dos dedos que se torna complicado distinguir quando acaba uma e começa outra. já conheci a morte e tive o prazer de a tratar por tu mais que uma vez, mas nada me tinha dado mais arrepios na espinha até hoje, do que aquelas mensagens, aquelas dezassete chamadas não atendidas. tenho ainda o cérebro adormecido e as minhas mãos desde as 8h da manhã até agora, quando o sol já quase se está a por, ainda não pararam de tremer. aliás, todo o meu corpo treme em acessos violentos de medo. medo por alguém que não eu, por aquela vida que se tornara tão frágil em questão de segundos. aprendi que são cristais, cada momento é cristal, e parte-se e destrói tudo o que vem a seguir porque é uma sequência. morte. vida. demasiado perto.
o nosso quase-amor foi como os animais que se encontram mortos à beira da estrada por infeliz destino. eu sei, eu sei, comparação demasiado rude, demasiado forte mas foi assim. nós sabemos que o pobre coitado lá está jazido, já o avistámos pelo canto do olho, às vezes com sangue inclusive, mas mal o carro passa, mal nós passamos pelo espectáculo, não conseguimos conter-nos a desejar ter visto melhor, a ter só dado mais um olhar. e tudo isto enquanto estamos profundamente angustiados e enojados. nós, meu amor, fomos assim. ou eu fui assim. já tinha visto, mesmo pelo canto do olho, que não eras certo, que estavas lá e eu não devia olhar mas não me prestei atenção. passei rapidamente pelo teu espectáculo que já era tão pouco teu como meu, e até hoje a única pessoa a quem eu continuava a querer prestar atenção era a ti. mas, meu querido, eu que até estava profundamente angustiada e enojada, deixei-me disso. já não pretendo dar só mais um olhar, a ter-te visto melhor e com outros olhos. deixei-me disso, repito.