é estranho como no final, o verão parece sempre escapar-nos entre os dedos. este mais do que qualquer um evaporou-se sem ninguém dar conta. perdeu-se em dias enfiados na cama devido à preguiça, em tardes em casa de amigos a fazer tudo e coisa nenhuma, em noites de que a memória é pouca ou nula. perdeu-se em livros que se deviam ter acabado de ler e não se leram, em pores-do-sol que deviam ter sido assistidos e ficaram sem espectadores, em conversas que foram adiadas. tudo é novo agora e não sei o quanto isso será extremamente assustador. continuo a pensar que ando bem em cordas de equilibrista e, se cair, levanto-me mas prendo-me sempre a pensar no dia em que não será assim. estou com medo porque agora tudo é estranho. o verão escapou-se-me entre os dedos.
'tanto ruído no interior deste silêncio: são as vozes dos outros a falarem em mim, pessoas de quem gostei, pessoas que perdi, gente que tenho ainda. não me parece que herdei muito dos meus pais, dos meus avós: algumas coisas mais ou menos superficiais mas lá no fundo nada. princípios, claro. regras. o resto, quase tudo, fiz sempre sozinho. e estive sozinho nos momentos mais difíceis da vida.'
antónio lobo antunes
lembro-me do netinho a cantar milla. a música entrava pela tua janela, infiltrava-se no escuro do quarto e fazia-me deitar lágrimas de felicidade. estávamos agarrados e lembro-me de pensar que seríamos felizes para sempre. cantávamos felizes, inebriados com o espírito do carnaval, sem preocupação alguma sem ser o que era real e se deparasse no momento. amei-te tanto m. foste tanto para mim que não sei se alguma vez chegámos a ser duas pessoas em vez de uma como éramos no meu pensamento. eu perdia-me em ti e tu em mim, embora saiba hoje que nunca foi saudável. sei que pensei demasiadas vezes que íamos sempre resolver os problemas e viver mais felizes do que o dia anterior. foi o m.? perguntavam-me. sim sim, mas já passa, respondia sempre com um sorriso. vivi metade dum ano a tentar resolver as nossas coisas. e tudo me parecia possível sabes? não havia discussão que não se resolvesse, não havia conversa que fosse em vão. sonhava tanto e na altura o que me parecia perfeito, parece-me agora tão sem sentido.. chorei de todas as vezes que viravas costas por não conseguires ser transparente e dizer as coisas que todas precisamos de ouvir. mas da última vez fui eu que virei costas. acredita que fui bem transparente e acredita também que não deixei nada por dizer que desta vezes fosses tu a precisar de ouvir.
no coração ficou, lembranças de nós dois.
não consigo dizer nada - e tu sabes o quanto eu gostava de dizer. simplesmente os dias ficaram mais escuros e até chico buarque já se cansa de cantar para mim. sinto-me vazia. mas um vazio talvez menos estranho que o último. do mal o menos.
boneca de porcelana com pernas cor de leite intermináveis. 16 anos com aparência de 40 devido a todo o peso que assombra a sua frágil figura. ele está mesmo em frente a ela, oferecendo-lhe os seus braços como protecção contra o mundo e ela está tão cansada.. abraça-se a ele como se fosse o último ser humano à face da terra pronto a dar-lhe o conforto que ela precisa.
o sol nasce lentamente com rosas e amarelos à mistura, um espectáculo a que ela gosta de assistir por saber que poucos o fazem. tem o coração longe do sítio onde o pousou pela última vez, entre aqueles pulmões que não lhe pertenciam mas que respiravam o seu mesmo ar e inspiravam e expiravam exactamente ao mesmo tempo que os seus, sem se atrasarem ou adiantarem sequer um segundo. agora o seu pequeno está longe, a bater descompassadamente sem pessoa que o guie, sem melodia que o acalme. deve-se encontrar tão amedrontado quando ela própria está.
boneca de porcelana que sonha todas as noites que alguém encontra o seu bem mais precioso e cuida bem dele como se de um órfão se tratasse. quem sabe tempos mais tarde as buscas dêem frutos e ela se reencontre com ele, sarado, cicatrizado, muito mais sábio e destemido e no fundo, em todas as suas células, válvulas e aurículas, em paz e feliz.